segunda-feira, 30 de maio de 2016

“Eu me recuso a categorizar discriminações”, diz a escritora portuguesa Ana Luísa Amaral


“Talvez as palavras que te digo
me transpareçam classe,
talvez nem te devesse dizer nada.
Porque és a mão que ampara o meu silêncio,
a minha filha, o meu cansaço
— à custa do teu cansaço, da tua filha,
do teu silêncio”

O trecho da poesia “Desculpe-me a ternura” revela um pouco da visão de mundo da poetisa portuguesa Ana Luísa Amaral no olhar com afeto e, certo embaraço, para a mulher trabalhadora que lhe dedica cuidados. Para a escritora, falar de feminismo é também falar de luta de classes e de todas as outras formas de opressão. Pesquisadora feminista da Faculdade de Letras do Porto e autora de 16 livros e sete traduções, Ana Luísa tem intimidade com o texto lírico e o faz também de forma política. “Falar sobre árvores (parte de um poema de Bertolt Brecht) é a expressão mais perfeita do lírico. É preciso recuperar o lirismo, aquele mais inútil e, assim, mais fundamental”, afirma.

Recentemente, ela participou de uma aula aberta sobre linguagens e estudos de gênero e do minicurso Gênero, Sexo e Sexualidades, realizados pela UFSC. Hoje, segunda-feira (30/5), lança o romance Ara, no Centro de Comunicação e Expressão, às 16h. O evento será de leituras de poemas, autógrafos e performance das Desamordaçadas. Durante as atividades, a poetisa concedeu uma entrevista ao Portal Catarinas sobre o feminismo e a onda conservadora que avança sobre o mundo e ameaça direitos conquistados.

Quando se fala em discriminação, é preciso ir além da questão da classe? O feminismo é uma forma de ampliar o olhar sobre a opressão?
Sim. Está tudo ligado. Ao falar de discriminação não podemos falar somente em classe. Esse é um dos grandes erros da esquerda ortodoxa, mais conservadora: resumir a opressão à luta de classes. No meu país, durante os anos 70 achou-se que era possível falar em luta de classes extinguindo a luta das mulheres, como se o feminismo não fosse importante diante de algo mais crucial que é a luta de classes. Judith Butler tem uma bela declaração: eu me recuso a categorizar discriminações. E eu também. Não posso dizer que a discriminação de classes é mais importante que a de gênero, ou da sexualidade Tudo está interligado. Quando temos governos de direita, eles atacam em todos os níveis, da sexualidade, do gênero, da sustentabilidade. Apoiado por organizações extremamente racistas, o candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, por exemplo, diz que o buraco de ozônio é uma invenção. 

O que explica e está por trás dessa onda conservadora que avança no mundo?
A palavra chave é o capitalismo, ele é um polvo, com vários tentáculos e faces, uma delas é a democracia. O neoliberalismo instala-se e, como vivemos aparentemente numa democracia, onde há partidos, pensamos que é possível lutar. Parafraseando o filósofo francês Frantz Fanon “não há pessoas não racistas, só há racistas e tolerantes ao racismo, sendo essas últimas as piores”. É mais fácil combater o discurso visível, do que um discurso de intolerância que é oculto. O capitalismo esconde-se por trás da democracia, ou seja ‘eu posso lutar, então porque me queixar?' O sistema tem formas de construir estruturas de organização que contrariam a ideia de liberdade.

Recentemente a legalização do aborto foi revista na Espanha. Você diz que pensava não ser possíveis retrocessos como esse. Como você avalia a situação do Brasil, em que o presidente interino além de excluir ministérios importantes, faz novas nomeações sem a participação representativa da sociedade?
Lembro de uma palavra na tragédia grega que significa soberba: essa possibilidade das pessoas fazerem tudo. Esse governo acha-se no direito de poder ter somente ministros homens brancos, ignorando fatias imensas da população, especialmente as mulheres que formam a metade. As conquistas são sim reversíveis. É necessário cuidar diariamente daquilo que temos de frágil que são a liberdade e a democracia. Não podemos baixar os braços. O capitalismo vai crescendo de diferentes maneiras. Em Portugal nos confiamos demais nas nossas conquistas. A crise avançou e o país ficou destruído em termos de conquistas sociais. Precisamos zelar por esse equilíbrio muito precário que é a liberdade e a democracia. Outra questão importante é o voto, os jovens têm que votar. Aqui no Brasil é obrigatório, mas na Europa não. A abstenção é altíssima nos países europeus. Isso é preocupante! Os movimentos sociais são cada vez mais necessários. As pessoas deixaram de acreditar nos partidos políticos que estão conluiados com as chamadas indústrias financeiras. É importante construir movimentos sociais. Aquela manifestação recente que levou mulheres às ruas de São Paulo é importantíssima. É necessário que as pessoas não se calem.

O feminismo nasce num campo de esquerda. Qual o lugar de partida, onde se situa o movimento feminista?
O lugar está na base dos próprios movimentos LGBT, queer, transexual e todos os que se preocupam com a discriminação. Se fosse possível sumarizar, eu diria que a luta do feminismo é pelos direitos humanos e direitos desse planeta em que vivemos. Nó temos somente um planeta. Uma matéria recente diz que Nova Iorque estará alagada em 2060. Quando falo em feminismo falo também no respeito à diversidade.

A direita utiliza-se de um discurso em defesa das liberdades individuais, no entanto o que se vê com o avanço do conservadorismo no mundo é uma tentativa de controle sobre a vida das pessoas. No Brasil, parlamentares buscaram definir até mesmo o conceito de família, numa posição contrária à união homoafetiva. Como você vê essa contradição?
O individualismo está ligado à questão econômica. Tão aperfeiçoado nos Estados Unidos, ele pautou a construção da América. Um exemplo é a criação de impostos por Donald Trump e o partido republicano. Se eu não tenho filhos porque terei que pagar impostos para a educação? Isso é pensar em mim somente e não em comunidade. A ideia de comunidade - e o dever de proteger o mais frágil, é algo estranho para o capitalismo. Há uma precariedade comum a todos, como diz Butler "nascemos e morremos e somos todos frágeis", precisamos uns dos outros. O capitalismo tenta nos impor a precariedade social. Essa ideia de direitos individuais está ligada, sobretudo, à questão econômica, ao direito à propriedade.

“Meu corpo me pertence” e “meu corpo, minhas regras” são lemas do movimento feminista em defesa da redução do poder do Estado sobre o corpo das mulheres. No entanto, a direita brasileira, defensora do Estado mínimo e das liberdades individuais, se posiciona contra pautas feministas, especialmente a legalização do aborto. Como você avalia essa contradição?
É estranhíssima a ideia de o homem ter o direito de dizer se a mulher pode ou não interromper a gravidez. Eu acho que abstratamente o homem até pode dizer algo, mas a última palavra é da mulher. Se a mulher quiser abortar, só se atarem os pés e as mãos a uma cama durante nove meses, por que ela tentará tudo que estiver ao seu alcance. Portanto, de fato, essa coisa de que o corpo é meu e me pertence não é retórica, é verdade. Quem tem a criança e traz por nove meses na barriga é a mulher e não o homem. 

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